por Tânia Soares (texto e edição), Daniela Amorim & Carolina Almeida
Em 2021, Portugal atingiu as mais de nove mil pessoas em situação de sem-abrigo, mais 800 que em 2020. Um relatório publicado pela Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem Abrigo (ENIPSSA) dá conta dos números que caracterizam estas pessoas - quantos são, quantos conseguiram habitação permanente, em que áreas estão, etc. O que não se mostra são as histórias destas pessoas. Quem está em situação de sem-abrigo não é apenas um número, mas sim um passado, um presente e um futuro.
Em 2019, havia cerca de 7017 pessoas em situação de sem-abrigo e 2021 foi o ano em que esse número ultrapassou os 9 mil. Com a inflação e a situação económica a que vemos Portugal dirigir-se, é de esperar que o próximo estudo indique um valor ainda mais alto.
O número de pessoas que conseguiram habitação permanente evoluem no mesmo sentido. Em 2018, 232 pessoas tiveram sucesso em sair da situação de sem-abrigo e em 2021 esse número aumentou para 713. Em termos proporcionais, é apenas um aumento de cerca de 4% entre esta baliza temporal.
Segundo o inquérito realizado pelo Grupo de Trabalho da ENIPSSA, das pessoas que estão na situação de sem-abrigo, 4.528 recebem o RSI (Rendimento Social de Inserção), 1.831 têm fontes de rendimentos desconhecidas, 1.221 recebem salário ocasional, 1.007 recebe pensões e outras prestações de carácter regular, 469 sobrevivem com pensões ou prestações de carácter regular, 284 têm salário regular e apenas 88 recebem subsídio de desemprego. No mesmo relatório, lê-se que o top 3 das causas de pessoas em situação de sem-abrigo são 1) Desemprego ou precariedade no trabalho - 3.233, 2) Dependência de álcool ou de substâncias psicoativas - 2.571 e 3) Ausência de suporte familiar - 2.365. O Do Outro Lado foi falar com estas pessoas e ouvir as suas histórias.
Da morte do pai às calçadas da rua
Amadeu Sousa tem 56 anos e está atualmente desempregado. Depois de muitos anos na rua, está a viver na cave de um amigo. Mas nem sempre foi assim: antes, a sua vida era "estável". Tudo mudou quando o seu pai descobriu que tinha um cancro maligno no estômago e decidiu tirar a própria vida, enforcando-se. Amadeu, que na altura só tinha 17 anos, diz que a partir desse momento ficou "com um trauma enorme", que dura até hoje.
Depois disto, Amadeu chegou a consultar um psiquiatra, mas recusava antidepressivos porque para ele, o melhor remédio seria sempre a droga. O homem de 56 anos relembra que não queria estar com a sua namorada, nem sair com os seus amigos. No entanto, "quando consumia heroína, a felicidade artificial vinha". Isto tornou mais fácil o seu vício. Só assim é que Amadeu sentia vontade de estar com os amigos, "ir beber um copo" e divertir-se.
Mas nem tudo é assim tão simples, e Amadeu sabe disso. "O pior é quando as coisas se vão agravando, tornando-se numa bola de neve", diz. O ambiente em casa também não foi o melhor "como se pode imaginar". Depois da morte do pai, a sua mãe automedicou-se excessivamente. "Fazia-me a vida negra, e chegou a acusar-me de lhe bater", conta. Oito anos depois, acaba por falecer com uma embolia cerebral. Com tudo isto, o consumo foi "mesmo um escape". Quando se deu conta, já precisava diariamente de consumir.
Amadeu Sousa | Do Outro Lado
Assim, Amadeu começou a perder rumo: deixou de pagar a renda, e isso fez com que perdesse a casa. Depois disso, passou muitos anos na rua e muito tempo a consumir drogas. Embora tenha tido ajuda e até ter conseguido estar em abstinência durante 10 anos e setes meses, teve "uma recaída" nos sete anos seguintes, exatamente por ter voltado para a rua. Atualmente, soma um ano e meio sem consumo.
Amadeu vai sendo ajudado por pessoas a quem ele atribui a característica de "coração de ouro". Embora esteja "muito agradecido", o homem em situação de sem-abrigo admite que isso não é suficiente porque precisa de apoios sociais. No entanto, a ajuda vinda da Segurança Social "é muito complicada" nestes casos e a sociedade ainda tem muito preconceito. Aliás, o próprio presidente da República defendeu que já haveria condições para erradicar o que classifica de "ferida social" e "um fracasso" da sociedade.
"É difícil alguém integrar-se na vida normal, por muito que as coisas estejam a melhorar e trabalhar bem", lamenta. Quando Amadeu estagiou em Aldoar com mais duas pessoas, foi o único a ter que pagar um quarto, "por estar abstinente". Os outros dois homens tinham a prestação paga pela Segurança Social, e isso fez com que se sentisse "revoltado". Perante esta situação, Amadeu preferiu então consumir, "para que pagassem o quarto" e outras necessidades.
Sair desta situação depende também muito da vontade das próprias pessoas. Amadeu reconhece que é difícil para muitas delas porque tentam sempre "arranjar substitutos" como o álcool ou medicação. "Por nós mesmos, ficar totalmente limpos é muito difícil, porque há uma dependência mental", confessa. Quem consegue deixar, é regular que volte a esse hábito mais tarde ou tenha recaídas. Isto acontece "porque há um bichinho que está na cabeça a dormir e que de um momento para o outro, acorda", assume.
A queda no mundo da rua
Jeremias (nome fictício) está há um ano em situação de sem-abrigo, mas atualmente já está a ser ajudado pela Associação Casa e procura por emprego. Contrastando com Amadeu, Jeremias frisa a diferença entre um sem-abrigo que fica na situação por circunstâncias "da vida" e quem fica pelo consumo de álcool e drogas. "Normalmente estão associadas, sim. Deve ser muito difícil encontrar um sem-abrigo que não consuma uma coisa ou outra, mas são duas realidades diferentes", explica.
O homem que sonha em trabalhar na área de informática diz que há três etapas de um sem-abrigo: como se chega à rua, como lá se vive e como se sai. A primeira é a que determina se uma pessoa está mais aberta à ideia de sair da situação. As pessoas que "caem" na rua sem estarem a contar e ficam desesperadas "são as que estão disponíveis para voltar atrás" porque sabem que a causa foi algo que não conseguiram controlar. Se uma pessoa chega à situação de sem-abrigo por causa do seu consumo/vício, "dificilmente volta" porque isso significaria "voltar ao início".
"O primeiro pensamento que surge quando se chega a esta situação "é a de que se vai morrer", diz. No caso de Jeremias, "a ideia foi chegar ao fim da linha" e esteve até em cima de uma ponte para tirar a sua própria vida. "O mundo estava de costas voltadas para mim e sentia-me mal, incapacitado, derrotado", relembra.
Hospital Joaquim Urbano | Do Outro Lado
"Não fui eu que encontrei ajuda, foi a ajuda que me encontrou"
Ao entrar nesta nova realidade, aparece ainda uma questão fundamental: "a quem é que vou pedir ajuda, quem é que me pode ajudar?". Ao não saber a resposta, uma pessoa "instala-se no seu canto e ao final de um tempo, vai entranhando a ideia de lá ficar ". O importante é então a ajuda recebida, caso contrário "não se consegue avançar". Jeremias está no CATJU (Centro de Acolhimento Temporário Joaquim Urbano) e admite estar numa fase "ascendente" e sente-se "pronto para voltar ao seu eu", exatamente por ter encontrado ajuda.
No entanto, isto era novo para Jeremias. O que se dizia na rua é que estas ajudas seriam "péssimas" porque implicavam regras. "Agora conheço uma série identidades que estão disponíveis para me ajudar", comenta. Esteve seis meses na rua antes disso acontecer, mas entende que há pessoas a quem demora mais do que isso. Este é então o ponto fulcral: estar a sentir que o mundo "virou costas" e encontrar ajuda. No entanto, "a ajuda para sair da situação ainda é insuficiente" segundo Jeremias. Além das ajudas pontuais de algumas pessoas, é das pessoas na mesma situação de quem se recebe mais solidariedade. "Quem mais ajuda um sem-abrigo, são os outros sem-abrigo", partilha.
"É muito fácil viver na rua"
Esta é uma frase cujo significado Jeremias foi aprendendo. Na rua "não se passa frio nem fome, não tenho contas para pagar, durmo e como quando quero e ganho dinheiro de alguma forma - é uma sensação de liberdade fabulosa", afirma. Uma pessoa fica habituada a viver assim. "A partir do momento em que arranjas um cantinho, uma caminha, e que estejas abrigado da chuva estás no mundo verdadeiramente à vontade. Essa é a verdade", admite.
Por um lado, Jeremias confessa que se não lhe tivessem ido buscar [Associação Casa], que viveria "à patrão, apenas com felicidade". Para estas pessoas, nem a alimentação era problema. "Comida não falta e às vezes nem sabíamos onde colocar tanta", conta. Jeremias nunca recebeu apoios do Estado, mas arrumava carros para ter dinheiro e vivia "bem" disso. Por outro lado, reforça que sem a ajuda da Associação, nunca haveria a oportunidade de sair da vida em que estava.
Nem tudo é um mar de rosas para uma pessoa em situação em sem-abrigo, ao contrário do que Jeremias retratou até ao momento. O homem diz também que as pessoas ainda têm muito preconceito e que isso "é o que dói mais" por demonstrar indiferença e julgamento. "Quando nos dizem que estamos ali porque queremos e nos viram a cara, custa muito", diz.
Além disso, a falta de higiene é das piores coisas de não se ter uma casa. "Sentes-te porco e envergonhado", lamenta. Quem vive na rua só muda de roupa quando arranja outra. Em seis meses, Jeremias não trocou uma única vez de roupa, mas não foi por falta de vontade. "Não há banhos grátis e isso faz com que não consigamos estar aptos sequer para ir pedir emprego", explica. Esse fator mais a inexistência de eletricidade torna quase "impossível" a procura por oportunidades de trabalho. "Tudo o que é básico para uma pessoa normal, para nós não existe", revela.
E como é para sair?
Exatamente pela rua se tornar num sítio confortável e de se ganhar dinheiro de forma fácil, uma pessoa começa a questionar das razões que tem para sair desse mundo. "Vou voltar para quê? Para voltar a preocupar-me com a renda da casa, o seguro do carro? Aqui estou bem. Ganho para o meu dia a dia e não me chateio", enuncia Jeremias. Tal como disse Amadeu, é preciso ter uma grande vontade para sair, "por isso é que quase ninguém o faz". "Se uma pessoa quiser sair da rua, tem de entender que a vida tem regras, compromissos e rotinas", explica. Caso não seja algo de interesse, a pessoa escolhe ficar onde está. Mas não é o caso de Jeremias: " estou a lutar para voltar à minha vida normal, ao meu eu "
Hospital Joaquim Urbano | Do Outro Lado
Esta é a triste realidade dos mendigos de rua em Portugal os números falam por si e eu acredito que muitos mais existirão (chamados ocultos) aqueles que tem vergonha de dar a cara que por um motivo ou outro, seja por abandono familiar ou simplesmente por vícios do álcool ou dependência de substâncias psicotrópicas e acabam nas ruas da miséria e infelizmente uns acabam por morrer por overdose e outros cometem crimes. O mundo tem de fazer mais por estas pessoas e em particular Portugal sob pena de ver no topo da Europa no que diz respeito a este tema. Por fim o excelente trabalho apresentado e realizado por esta equipa de jovens é de louvar e que continuem assi…
Bom trabalho e muito importante para abater preco